Por Hamilton Leão
Um projeto de instalação de um
sistema de tratamento e destinação de resíduos (STDR) para armazenar todo o
lixo da Região Metropolitana de Manaus no município de Iranduba/AM vem causando
bastante polêmica entre a população e a prefeitura.
As comunidades do município,
principalmente as rurais reagiram com preocupação ao terem conhecimento da
construção de STDR ao longo da rodovia Manuel Urbano - AM 070, com a pretensão
de receber todo o lixo de cidades que integram a região metropolitana.
Embora a polêmica discussão tenha
passado por três audiências públicas a cargo do IPAAM, órgão estadual
responsável pelo o licenciamento ambiental e com uma grande manifestação da
população contra o STDR, a prefeitura, que concedeu sem processo de licitação a
obra a uma empresa privada continua firme na proposta.
Na via da legalidade, a 1ª promotoria
de Justiça do Ministério Público de Iranduba, por meio do promotor de Justiça,
Leonardo Nobre ingressou com uma ação civil pública n. 080023-17.2022.8.04.0110
no Tribunal de Justiça para tentar impedir o processo de licenciamento. O MPE
também Interpôs um agravo de instrumento n. 4005502-92.2022.8.04.000, ao qual
obteve liminar para parar o licenciamento.
Por sua vez, a prefeitura
interpôs recurso de suspensão de liminar n. 4009710-22.2022.8.04.0000, obtendo
da presidência do tribunal de Justiça do Amazonas a continuidade do processo.
Na sequência, o MPE recorreu da decisão
através de um agravo interno n. 0013552-78.2022.8.04.0000 e um pedido de
consideração com o objetivo de reformar a decisão da presidência do Tribunal.
No entanto, as ações jurídicas do
MPE contra o licenciamento do aterro não seguiram o mesmo trâmite de celeridade
do TJAM em relação ao pedido da prefeitura de Iranduba e aguardam parecer do
judiciário amazonense.
Nessa seara de contrariedades,
alguns pedidos já foram protocolados no IPAAM contra a instalação do pretenso
aterro sanitário da região metropolitana de Manaus no município de Iranduba. Entre
eles está o documento de contestação ao relatório de impacto de meio ambiente
(Rima) da empresa Norte Ambiental, protocolizado no órgão licenciador pela
Associação Rural de Desenvolvimento Comunitário Morada do Sol.
A associação, através de seu
setor jurídico contesta o Rima por apresentar várias inconsistências, entre
elas a ilegitimidade da empresa privada de contratar com o município sem o
devido processo legal de licitação pública. Dessa forma, o município não pode
dar continuidade ao processo sem antes atender o que dispõe a legislação sobre
contrato de concessão de serviço público.
De acordo com o documento, a
empresa privada promove o procedimento de licenciamento ambiental para o
tratamento e destinação final dos resíduos sólidos sem a cautela do IPAAM, que
vem acatando as decisões da empresa e da prefeitura sem levar em consideração
os argumentos contrários da população.
Outro fator preponderante arguido
no documento é que a prestação de serviços de saneamento é de responsabilidade
exclusiva do ente público municipal, conforme estipula a Política Nacional de
Resíduos Sólidos, Lei n. 12.305/2010 e Política Nacional de Saneamento Básico,
Lei n. 11.445/2007.
Ou seja, Os serviços de
tratamento e destinação final dos resíduos que a prefeitura tenta atribuir à
empresa privada são de competência do titular dos serviços públicos de limpeza
urbana e de manejo de resíduos sólidos. Cabe a cada município a
responsabilidade pela organização e prestação direta ou indireta desses
serviços.
Irregularidades
ambientais
Os danos ambientais apontados
estão muito além do que sugere o relatório de impacto apresentado pela empresa
Norte Ambiental e vão desde aos riscos de contaminação dos recursos hídricos,
como também a afetação do lençol frenético formado por dezenas de igarapés, nascentes
e lagos próximo ao terreno que se cobiça construir o empreendimento.
O exagerado montante de lixo é
outra situação ambiental que causa preocupação à população. O município de
Iranduba, com aproximadamente 50 mil habitantes e que em média gera 40
toneladas diária de lixo passará a receber mais de três mil toneladas
provenientes dos municípios da região metropolitana.
A cidade de Manaus, a mais
próxima de Iranduba, separada pela ponte Rio Negro, cerca de 30 km do aludido
aterro de resíduos sólidos é a que mais irá 'fornecer' lixo para o município de
Iranduba.
A carga de chorume de dimensão
inimaginável é outra inquietação que tem deixado aflitos os agricultores,
proprietários de hotéis, pousadas e balneários que estão na área de influência
direta do aterro. O líquido escuro e putrificado proveniente do lixo decomposto
poderá atingir dezenas igarapés e lenções freáticos e piorar ainda mais em
períodos de elevadas chuvas na região os recursos hídricos utilizados para
diversas atividades como piscicultura, lazer, consumo e na agricultura.
O perímetro de construção do
aterro de resíduos sólidos está situado na confluência da APA Margem Direita do
Rio Negro que abrange vários igarapés, sítios agriculturáveis, atividades de
piscicultura, hotelaria e lazer. O alto
grau de poluição do solo, ar, água e sonora afetará consideravelmente as
dezenas de comunidades e empreendimentos que há anos convivem com a normalidade
ambiental.
Com 554.334
hectares iniciais, a APA Margem Direita do Rio Negro, criada pelo Decreto
16.498 de 1995, redelimitada através da Lei
2.646 de 2001 para 566.365 ha e
redefinida os limites pela Lei 3.3355 de 2008 para 461.740 ha, destina-se
a proteger e conservar a qualidade ambiental e os sistemas naturais ali
existentes, visando a melhoria da qualidade de vida da população.
Segundo pesquisa
socioeconômica feita pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente – SEMA, a economia da APA é baseada nos mais variados
sistemas pelas comunidades, sendo eles produção de farinha, de artesanato,
vassouras, canoas e barcos, dentre outras. A principal fonte de renda por parte
da comunidade da APA é a pesca.
Formada pelos municípios de
Iranduba, Manacapuru e Novo Airão, a APA comporta uma biodiversidade de suma
importância para o equilíbrio ambiental da região, porém com espécies ameaçadas
de extinção. A parte Sul apresenta áreas degradadas, principalmente no
município de Iranduba devido sua proximidade com Manaus.
A APA também abriga a reserva de
desenvolvimento sustentável RDS Rio Negro com 102,9 mil ha, onde vivem
populações tradicionais que trabalham o manejo dos recursos naturais do
ecossistema.
O Decreto de criação da APA da
Margem Direita do Rio Negro estabelece em seu art. 4° que não são permitidas as
atividades de terraplanagem, mineração, dragagem e escavação as quais venham
causar danos e degradações ao meio ambiente e perigos para as pessoas e
biota.
Danos
ao patrimônio arqueológico, cultural e histórico
O município de Iranduba é um
berço de pesquisas para muitas instituições e cientistas nacionais e
estrangeiros devido ao seu alto potencial arqueológico, cultural e histórico encontrado
oriundo das atividades de civilizações pré-coloniais que habitaram a região e
que seguem uma ancestralidade com os povos remanescentes.
A presença de civilizações
pré-colombianas na ocupação da Amazônia traça um ponto fundamental de estudos,
saberes e culturas desses povos com as atuais populações tradicionais,
principalmente as de cultura indígena encontrado em vestígios de artefatos
cerâmicos, terra preta de índio, vasos, urnas funerárias artísticas etc.
Iranduba, conforme sugere o
relatório do STDR está inserido nesse espaço de descobertas e transformações,
moldando-se como um local de susceptíveis presenças dessa riqueza arqueológica,
com muito ainda a ser pesquisada.
A quantidade extraordinária de
mais de 80 sítios arqueológicos catalogados durante o projeto Amazônia Central
em Iranduba, criado pelos antropólogos Michael Heckenberger, da Universidade da
Flórida, James Petersen, da Universidade de Vermont e o arqueólogo e etnólogo
da Universidade de São Paulo, Eduardo Góes Neves evidencia a dimensão dos
estudos.
O projeto Amazônia Central catalogou
150 sítios arqueológicos na região e indica a presença de gerações de povos
antigos e reforça a necessidade extrema de preservação, conservação e proteção
como forma de garantir o patrimônio para estudos posteriores.
Observada a importância que tem o
patrimônio arqueológico para a humanidade, uma proposta feita em 2009 pela
turismóloga e doutora em Arqueologia pela Universidade de São Paulo, Adriana
Meinking Guimarães ao então presidente do IPHAN em Manaus, que hoje ocupa a
presidência do IPAAM, para a criação do museu arqueológico a céu aberto denominado
Hatahara traçaria definitivamente o roteiro de turismo científico da região.
A inédita proposta de criação do
Museu Hataraha, sítio arqueológico situado nas mediações da cidade lamentavelmente
não seguiu seu curso, relegando o município a oportunidade de ter um importante
setor que abrigasse juntos turismo, meio ambiente, história e reconhecimento
internacional para o incremento da economia e desenvolvimento do local.
Como ironia do destino, a ideia
de construção de um aterro de resíduos para absorver todo o lixo da região
metropolitana nas mediações desses sítios arqueológicos pode enterrar de vez
importantes trabalhos de pesquisas realizadas em Iranduba e desqualificar as
históricas descobertas de renomados cientistas da área arqueológica.
Empreendimentos
afetados
Com os danos ambientais
previstos, dezenas de empreendimentos serão diretamente afetados e, como
consequência, toda atividade comercial, de serviço, habitacional, entre outras poderá
amargar sérios prejuízos, caso o órgão ambiental autorize o licenciamento para
construção do aterro de resíduos sólidos.
Setores como o da agricultura com
a produção de alimentos para a região, o turismo e sua rede de hotéis de selva
e pousadas, o setor de lazer com seus balneários, os loteamentos e condomínios
em expansão terão impactos diretos em suas atividades.
O setor de agricultura é o que
mais sofrerá impacto, pois nada menos do que 1.700 famílias vivem da
agricultura familiar, as quais produzem hortifrutigranjeiros para abastecer o
mercado local e municípios da região metropolitana.
De acordo com dados oficiais do
IDAM, órgão estadual de
assistência técnica e extensão rural, a população de agricultores é
formada por 17 comunidades rurais, que por meio de pequenos agricultores
cultivam seus produtos alimentícios no perímetro do terreno reservado para
construção do aterro, conforme constatou pesquisa da Associação Morada do Sol.
O contingente dessas comunidades
de agricultores é composto de mais de cinco mil pessoas, divididas em 1.700
famílias que amanham a cultura de alimentos saudáveis. Prever uma situação em
que fezes de urubus e a proliferação de insetos e ratos prejudiquem a plantação
é um mau presságio que não querem vivenciar.
Embora bem presentes na labuta
diária, esses agricultores não foram mencionados no documento do Rima,
elaborado por uma empresa da cidade de Taubaté, interior de São Paulo e pelo
Instituto Piatam, com sede em Manaus e vinculada à Universidade Federal do
Amazonas.
A
equipe do Rima identificou dez comunidades na área de influência direta do
empreendimento, sendo sete com acesso pela rodovia AM 070 e três mais próximas
ao rio Negro. O documento também não menciona a densidade populacional dessas
comunidades, limitando-se a informar apenas a média de três pessoas por
residência.
Absurdamente, a comunidade Nova
Esperança, distante 100 metros do projeto de construção do aterro e que possui
73 famílias de agricultores sequer foi mencionada no documento do Rima. A grave
omissão dessa comunidade de agricultores quase lindeira ao terreno do aterro
põe em dúvida o estudo de impacto ambiental.
O
turismo é outro setor que amargará as consequências nefastas de uma possível instalação
de aterro de resíduos ao longo da estrada. Formado por vários hotéis e
pousadas, o atrativo das belezas naturais amazônicas como a exuberante floresta
e os recursos hídricos disponíveis poderão afastar clientes que buscam por
espaços de contemplação e sossego.
De
acordo com a Associação Morada do Sol, a rede hoteleira composta por pelo menos
cinco hotéis explora o setor turístico rural da margem direita do rio Negro. Os
empreendimentos de turismo
Amazon Jungle Palace, Tiwa
Amazonas Eco Resort, Amazon Fish, Amazon Eco Hostel e Pousada Amazônia
Encantada citados pela associação ficam numa linha reta de 5 km e não foram
incluídos no Rima do STDR de Iranduba.
Ao
ignorar a rede hoteleira existente e de grande fluxo de hóspedes, a empresa
privada desconsidera um setor de elevada importância econômica e turística para
o município de Iranduba, que gera centenas de empregos e hospeda pessoas de
todas as partes do mundo.
O
setor de lazer tão pouco deixará ser atingido, pois alguns, entre eles a Praia
do Açutuba, Cachoeira do Castanho e Praia do Paricatuba estão localizados em
linha de influência direta do aterro, segundo o aponta o movimento popular
contrário à obra.
Esses
balneários são pontos turísticos para milhares de pessoas oriundas de várias
cidades da região metropolitana que utilizam a estrada AM 070 para acessar esses
destinos em busca de recintos com atrativos naturais.
O
tráfego de centenas de caminhões de lixo diariamente às margens da rodovia
Manoel Urbano irá impactar e prejudicar os diversos visitantes desses
balneários e de demais destinos. Os pesados carros coletores de lixo com odores
insuportáveis, poluindo o ar e deixando vazar chorume pelo caminho dividirão o
mesmo espaço com milhares de veículos de passeios.
Estima-se,
segundo a associação que mais de 100 caminhões coletores de lixo, cada um
transportando 10 toneladas por dia trafegarão pela recém-construída e duplicada
AM 070, que liga Manaus aos municípios de Iranduba, Cacau Pirera, Manacapuru e
Novo Airão.
O setor imobiliário com dezenas de
empreendimentos já em uso e com a expansão de loteamentos habitacionais sentirá
os reflexos dessa descabida medida de instalação de um aterro de resíduos.
Obviamente, grande parte dos condôminos adquiriu esses imóveis para uma vida
tranquila e próxima ao ambiente equilibrado.
Chácaras,
cafés regionais, restaurantes, empresas, comércios, pequenos e médios estabelecimentos
comerciais etc. fazem parte da lista de empreendimentos que estão estabelecidos
na área de afetação à implantação do projeto de aterro e tratamento de resíduos
e que sofrerão as consequências da obra.
Cifras
milionárias do lixo
A produção de lixo é um fator
gerador de riqueza para muitas empresas terceirizadas que operam no setor.
Reina a paradoxal lógica do quanto mais lixo gerado, melhor, pois mais dinheiro
público será destinado às empresas privadas, que ganham por tonelada de lixo
depositado no aterro ‘sanitário’.
No relatório de atividades do ano de 2018, a Secretaria
Municipal de Serviços de Limpeza Pública de Manaus (Semuslp) pagava R$ 170
reais por tonelada de lixo. Na atual gestão, não há relatório do ano de 2022 e
nem informações disponíveis sobre o valor atualizado por tonelada.
Com uma população estimada pelo
IBGE em 2021 em mais de 2,2 milhões de habitantes, por volta de três mil
toneladas de lixo por dia gerados na capital irão fazer parte de um cenário
nada agradável como as das montanhas de lixo que hoje despontam no aterro de
resíduos sólidos da metrópole.
De acordo com o último relatório
de atividades da Semuslp disponível no site do órgão, de janeiro a dezembro de
2021, o aterro de Manaus recebeu 838,2 toneladas de resíduos sólidos, com média
diária de 2,3 toneladas.
Com uma estimativa de despesa de
R$ 402,6 milhões para a Semulsp, o município de Manaus pagou em 2021 para
empresas terceirizadas o montante de R$ 241,8 milhões para atividades
operacionais, sendo R$ 156,8 milhões para a coleta de lixo e R$ 85 milhões para
os serviços de tratamento e destinação final dos resíduos sólidos no aterro.
Relação
homem-meio ambiente nada agradável
Este
é, portanto, o cenário atual dos vários argumentos que configuram a fumaça do
bom direito, o princípio da precaução e a racionalidade diante de uma situação
temerária apresentada pela prefeitura local e que têm como objetivo evitar
tragédias a população e a seres de um ecossistema que está em constante ontogenia.
A relação do homem com o meio em que vive é
construída por expressivas interações, experiências e saberes, resultando um
ambiente de pertencimento tão grande que o legitima para defesa de seus
interesses e o configura para lutar por aquilo que é fruto de uma raiz
histórica.
Nesse sentido, quando as dinâmicas sociais,
ambientais, históricas, culturais e econômicas são ameaçadas, cria-se uma autodefesa,
no intuito de resguardar o espaço natural para garantir sua sobrevivência e de
futuras gerações.
Assim, quando a topofilia de uma população é
confrontada a partir de mudanças bruscas e sem qualquer nexo de envolvimento, a
sociedade reage à luz da racionalidade, evitando que seus direitos fundamentais
sejam suprimidos por interesses duvidosos.
Dessa forma, a população do município de
Iranduba vem agindo com bravura aos atos de um poder constituído, que na lógica
dos princípios da administração pública deveria propor políticas públicas de
caráter coletivo, evidenciando a supremacia do interesse público sobre o
privado.
Instituto
Amazônico da Cidadania – IACi
Manaus/AM, 31 de janeiro de 2023